O primeiro quadro com um negro sem ser em posição subalterna, entre uma série de desenhos subversivos e polémicos, eis o segredo que escondem as Gares de Alcântara e da Rocha do Conde de Óbidos: os painéis de Almada Negreiros, pintor, escritor, artista modernista, ele próprio são-tomense, filho de mãe angolana.   

As duas gares são dois edifícios imponentes que se podem ver numa visita à beira rio, foram projetadas pelo arquiteto do regime do Estado Novo, Porfírio Pardal Monteiro nos anos 1930 para modernizar o Porto de Lisboa - obra há muito necessária. As Gares foram inauguradas na década seguinte - com os painéis polémicos.

Nos painéis da Gare Marítima de Alcântara, Almada contou as histórias de Portugal e dos Descobrimentos: a lenda da Nau Catrineta e o milagre de D. Fuas Roupinho, que foram aliás alvo de grande polémica para o regime do Estado Novo - um regime que não a desejava. Mas mais polémica houve ainda com os trípticos da Gare Marítima da Rocha do Conde de Óbidos, onde se ilustra a vida dos cais e o drama da partida dos migrantes - algo impensável para o regime, que, aliás, tinha pedido que as Gares mostrassem um visão positiva da cidade aos turistas, aos que chegavam e não aos que partiam.

Estas segundas pinturas correram o risco de serem apagadas. Isso não aconteceu com a intervenção do do diretor do Museu de Arte Antiga na altura, João Couto.

As Gares e os painéis assistiram à partida dos soldados para a Guerra Colonial, à chegada dos portugueses vindos das colónias e até mesmo à passagem de quem fugia da Europa Nazi - muitos dos que pedem para visitar, hoje, são judeus e descendentes.

Os painéis de Almada Negreiros foram testemunhas disso tudo. Para o historiador e crítico de arte José Augusto França, são “a obra-prima da pintura portuguesa da primeira metade do século”.
Monumento de Interesse Público desde 2012 e um dos 25 lugares mundiais a preservar segundo a World Monuments Fund (WMF) os painéis estão a ser restaurados, com o laboratório HERCULES da Universidade de Évora.

Já houve algumas intervenções, que revelaram detalhes interessantes: num dos painéis da Gare Marítima de Alcântara, uma mulher vestida com mangas brancas está debruçada sobre uma cesta de peixe. Mas descobriu-se que, afinal, o branco seria originalmente… branco com tiras amarelas e desenhos de flor-de-lis!

Os edifícios estão abertos ao público um fim-de-semana por mês, podendo ser visitados mediante marcação.

Por Ana da Cunha